O mundo da música é repleto de canções que falam sobre emoções, sejam elas tristeza, amor, felicidade. Enfim, dezenas de representações dos sentimentos humanos. Dentre esses assuntos comuns à música, as lágrimas ou o choro também são bastante encontrados nas letras das canções.
Por isso, nesse artigo, falaremos sobre uma das canções mais lindas e muito famosa em seu tempo: Flow my tears [correi minhas lágrimas]. É uma composição do músico e alaudista inglês John Dowland, que viveu durante o período elisabetano. Como o próprio nome diz, é uma canção que tem o foco nas lágrimas.
Porém, essas lágrimas não simbolizam apenas uma tristeza, mas também a melancolia, assunto muito comum neste período. Então, entenda agora sobre essa canção, o contexto de sua composição, sobre John Dowland e sua relação com a melancolia.
O contexto de Flow my Tears
Essa peça é uma ayre, ou seja, canção inglesa renascentista. As ayres eram muito populares na Inglaterra entre os séc. XVI-XVII e eram publicadas como coletâneas em livros de canções. Além disso, era comum que esse tipo de música fosse escrito para voz e alaúde, podendo também ser cantada a 4 vozes.
Flow my tears, então, foi publicada em 1602 no The Second Booke of Songs [Segundo Livro de Canções] de John Dowland. Porém, sua melodia foi composta como uma peça solo para alaúde, intitulada Lachrimae [lágrimas] em 1598 pelo mesmo compositor.
Assim, em 1602, Dowland coloca um texto nesta melodia, transformando-a em canção. Embora a autoria do texto seja desconhecida, acredita-se que o próprio Dowland tenha escrito o poema.
Mas quem foi John Dowland?
Dowland foi um compositor inglês e alaudista que trabalhou em diversas cortes da Europa: Alemanha, Itália, Dinamarca e Inglaterra. Suas composições eram muito famosas, tendo o seu The First Booke of Songs [Primeiro Livros de Canções] editado 5 vezes! Lembrando que naquele período, papel era muito caro.
Era também tido como um melancólico, pois sempre usou a melancolia como sua persona. Você pode encontrar diversos exemplos disso nas assinaturas de suas músicas ou prefácios dos livros de canções em que ele se considera um “desafortunado”, tendo até o moto “sempre Dowland sempre triste”.
Dentre suas principais composições, Dowland publicou 4 livros de canções, 1 livro com danças instrumentais e harmonizou salmos para outros compositores. E se você for olhar a obra dele verá que as lágrimas é um assunto que se repete em diversas obras suas. Pois é, elas são sua assinatura.
O que era melancolia neste período?
É importante dizer que melancolia nessa época não era exatamente o que pensamos sobre melancolia atualmente. Basicamente, entendemos melancolia como uma depressão profunda.
Porém, naquele período do séc. XVI, a melancolia fazia parte dos 4 humores que acreditavam que formavam o nosso corpo: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra.
Assim, para uma pessoa ser bem humorada (veja que humor também tinha uma conotação diferente da atual), esses humores tinham que estar em equilíbrio. Contudo, frequentemente eles se desequilibravam por diversos fatores, gerando os 4 temperamentos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico.
Portanto, a melancolia vinha do excesso de bile negra, o humor que gera esse temperamento. Mas não era só isso, acreditava-se que as pessoas melancólicas eram ‘gênios’ ou ‘ser de exceção’.
Caso queira saber mais sobre melancolia, indico a leitura do Problema XXX-I de Aristóteles. Um dos primeiros autores a dedicar um escrito apenas para a melancolia e entender a ligação entre este temperamento e os dons artríticos.
O que a melancolia causava?
Sendo assim, acreditava-se fortemente que os melancólicos eram grandes artistas, grandes poetas e criavam grandes feitos. Isso porque havia uma relação entre melancolia e excepcionalidade. Algo quase divino.
Porém, como nem tudo são flores. Ser melancólico não era algo muito divertido. Isso porque seus sintomas eram: torpores, atimia, terrores, criava úlceras, entre outras mazelas.
A pessoa melancólica era tida como muito pálida, seca, solitária, importava-se com os saberes mais difíceis. Basicamente, a melancolia poderia levar à loucura ou tristeza extrema.
“[O humor melancólico é] Frio e seco; de cor preta e escura; de substância inclinada à dureza e frieza; firme em opinião; duvidoso na deliberação; suspeito, doloroso em estudo e circunspeto; dado aos sonhos medonhos e terríveis; de afeto triste e cheio de medo; ganancioso e ciumento; (…) dessas duas disposições de cérebro e coração nasce a solidão, o luto, choro…suspiro, soluço, lamentação, expressão de falecimento e enforcamento, ritmo lento, silencioso, negligente, recusa a luz e a frequência do homem, deleita-se mais na solidão e na obscuridade” – Treatise of Melancholy (1568) de Timothy Bright
Outro livro que descreve cada um dos sintomas e causas da melancolia é o The Anatomy of Melancholy de Robert Burton, um dos livros mais famosos sobre o assunto e tem tradução para o português!
“Melancolia é um humor frio e seco, grosso, preto e azedo. Gerado da mais feculenta parte da alimentação, e expurgado do baço, é uma barreira aos outros dois fluidos quentes (sangue e cólera), preservando-os no sangue, e alimentando os ossos. Esses quatro humores tem alguma analogia com os quatro elementos, e as quatro idades do homem” – The Anatomy of Melancholy (1621) de Robert Burton.
Quais eram os assuntos abordados em uma música sobre melancolia?
Por toda essa propagação da imagem do melancólico, diversos autores conectavam a melancolia com pessoas que adoram a solidão, a escuridão, sentem muitas dores e são extremamente tristes.
Então, nas músicas tidas como melancólicas, você encontra cada um desses assuntos. E este é o caso de Flow my Tears.
Portanto, os assuntos mais discutidos seriam escuridão como lugar acolhedor, afastamento da luz, solidão, reclusa, espera da morte, tristeza, soluços, lágrimas, entre outros.
Todos esses sentimentos de renuncia da luz, de reclusa, de tristeza, de medo eram causas e consequências da melancolia ao mesmo tempo.
A música Flow my Tears
Sendo assim, essa peça tem vários desses elementos de representação da melancolia, além de conter o símbolo mais importante e frequentemente encontrado nas obras de Dowland, as lágrimas.
A peça tem 3 seções que são repetidas com textos diferentes. Vamos ao texto!
“Correi, minhas lágrimas, caí de suas nascentes; exiladas para sempre, deixai-me lamentar; onde o pássaro preto da noite canta suas tristes infâmias; ali deixai-me viver sozinho.
Luzes caí em vão, não brilhei mais; nenhuma noite é escura o suficiente para aqueles que, em desespero, deploram sua sorte perdida; a luz não revela nada além de pena.
Nunca deixei minhas dores serem aliviadas; desde que compaixão se foi; lágrimas, e suspiros, e gemidos privaram meus dias cansados de todas as alegrias.
Do mais alto pináculo do contentamento minha fortuna foi arremessada; e medo, e mágoa, e dor são as esperanças para meus desertos, já que a esperança se foi.
Escutai, oh! Sombras que morais na escuridão. Aprendei a desprezar a luz. Feliz, feliz aqueles que no inferno não sentem o desprezo do mundo”.
Para ter acesso ao texto original em inglês na partitura, clique aqui.
Retórica-musical
Antes de comentar a relação texto e música, é preciso dizer que neste período a retórica era comum não só na oração, textos, mas também na música.
Assim, os compositores utilizavam nas músicas recursos retóricos, o que chamamos de figuras retóricas. Basicamente, para cada figura musical existe uma representação, um lugar comum, que é enfatizada por esses recursos.
Por exemplo, existem certos intervalos musicais que representariam a tristeza ou alegria. O uso de pausas ou repetições musicais/textuais poderiam ser usadas para enfatizar alguma mensagem, ou representar suspiro.
Se você se interessa por esse assunto, neste período temos: Thomas Morley (1557-1602) em seu A Plaine anda Easie Introduction to Praticall Musicke (1597), Gioseffo Zarlino (1517-1590) em seu Le istitutioni harmoniche (1558). Posteriormente, Joachim Burmeister (1566-1629) codifica todas essas figuras em um só livro, intitulado Musica Poetica (1606).
Analisando texto e música
Bem, a representação da primeira frase “correi minhas lágrimas, caí de suas nascentes” é feita por dois tetracordes descendentes, ou seja, 4 notas descendentes. Essa linha melódica descendente cria a imagem da queda. Além disso, entre esses dois tetracordes há um salto de 6m ascendente (mi-dó), lugar comum para representação do lamento.
O primeiro tetracorde está no modo frígio e também já era um lugar comum para a representação do lamento. Vários outros compositores contemporâneos a Dowland utilizaram esse recurso.
Na segunda estrofe, a parte do texto que remete a “e medo, suspiro e gemidos são esperanças para meus dias cansados” faz uso de linhas melódicas ascendentes. Para cada uma dessas palavras há uma pausa anterior, o que dá essa sensação do suspiro.
Vale falar que essa é a única parte da peça que as linhas ascendem enfaticamente. Além disso, essa melodia é repetida pelas outras vozes, dando mais ênfase, o que podemos chamar de imitação.
Na última estrofe, logo no início, quando se faz alusão às sombras “escutai, oh sombras que morais na escuridão”, a música faz o que chamamos de espelho e isso alude a essa imagem das sombras.
Ainda nessa parte, no texto “feliz, feliz aqueles que no inferno não sentem o desprezo do mundo” todas as vozes descendem simultaneamente, culminando na palavra “inferno” que é feita por uma nota longa, enfatizando essa palavra.
Para ver esses exemplos comentados juntos com a música, assista nosso vídeo. Aqui nós interpretamos trechos da música para ficar mais ilustrativo!
Os assuntos deste texto
Como você pode ter reparado, vários assuntos conectados com a melancolia estão abordados neste texto. A reclusa à luz e desejo pela escuridão, os sofrimentos vividos pela persona que não tem mais esperança, as lágrimas e a solidão.
Flow my tears é considerada umas das músicas deste compositor que mais tem ligações com a melancolia. Outra pela dele que também bebe da mesma fonte é In darkness let me dwell (1610).
A obra de John Dowland está repleta de símbolos melancólicos e também de ligações com as lágrimas, sendo sua assinatura, seu carimbo.
Flow my tears foi uma das peças de mais sucesso deste compositor no seu tempo. Mais recentemente o violonista Julian Bream começou a gravar as peças de Dowland o que colocou novamente esse repertório em foco. Além disso, o Sting também já interpretou várias peças deste compositor.
Você curte esse tipo de repertório? Gostou de saber como texto e música se relacionam? Comente aqui embaixo e compartilhe esse texto!
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